terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Um homem alto conduzia quando se perdeu no horizonte em pensamentos. A chegada ao destino aconteceu num ápice; e sentiu-se insatisfeito. Era a viagem, o ir, o estar na estrada que maior prazer lhe trazia aos dias (que de monótonos) pesarosos.
Respirou fundo e parou.
Colocou o chapéu e entrelaçou os dedos na asa da mala. Respirou fundo e, ao olhar no espelho retrovisor, apertou a pele gasta; mas ao encontrar-se com a imagem dos seus olhos, largou-a com repúdio. Limpou a mão à lapela do casaco e, de seguida, esboçou o primeiro sorriso do dia.
O nojo profundo e repentino que sentiu de si carecia de escárnio para ser suportável.
Para o manter activo após a desilusão da chegada ao destino; sorriu.
Saiu do carro, trauteou o discurso seguro, caminhando até á campainha segura que denunciou a sua chegada.
"Amílcar Gomes. Os meus pêsames. O corpo? Onde está?"
As palavras não importam. Não têm peso nem intenção. É a forma como são pronunciadas que lhes dá o peso e o sentido.
Era a forma que ensaiava nas palavras que mastigava como se fossem a lista de supermercado.
Amílcar era pródigo em dotar as palavras da intenção certa.
"Não há angústia maior que a morte dos outros, nem alívio terreno maior que morrer."

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Sentado à varanda sorvia cigarros embriagando os sentidos. Magro não era, mas escanzelado na atitude; o que lhe conferia um ar pouco saudável.
O mal vinha-lhe de dentro.
A consciência abalava-lhe o prazer, tornado as noites em espirais de tédio.
"Tanta complicação!" - apregoava - quando era ele quem mais complicava o trivial e ordinário: sentir.
Levantou-se numa atitude de desprezo, daquelas de quem não quer saber; que o interesse é pouco!
Altivo, mas sem presunção, retirou-se do confronto com o inevitável; os olhos falavam-lhe muito alto e os lábios faziam-lhe escapar a hipocrisia.
Mas escolheu parar.
Demorou-se, ainda que brevemente, lá fora.
Sentiu um peso que o impedia de avançar. Colou-se-lhe ao peito um frio estranho. Caiu, prostrado, mas não levou as mãos a si; olhou para elas e renegou-as por terem obedecido à consciência, que agora, de nada lhe valia.
Não foi medo o que sentiu; mas arrependimento por não ter ido mais longe; por ter ficado naquela varanda. 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

POESIA ANIMAL - O "F"

FORMIGA:

A formiga fotografava famosos. Frequentava festas formidáveis e forçava-se a frenesins familiares. Firme e faladora, folheava de forma fugaz folhetos com figuras formosas. Fumava com fervor, fantasiando fazer filmes fortes que fatalmente fossem fogo para os fracos. Focou firmemente a frase que fugia do formato final. Figurativamente, a faca fintava-lhe a forma fragilizada pelos fármacos. Fictícia era a firmeza que frequentemente farejava na fiel fuga. Feliz e falida, fez fama da ferida de que faltava falar.

POESIA ANIMAL - O "E"

ELEFANTE:

O elefante estava extremamente envolvido em empresas de espionagem. Equacionava educar essa elite, elevando-a a estatuto eloquente. Estranhava, no entanto, o estrago emergente de enfatizar emoções. Encarregou-se de enlatar elaboradas ervas e encharcou-se em etanol. Eclipsou num embalar estranho e elegeu errar, para educativamente emoldurar o enlace. Entretanto, o esófago esponjoso estampou-se-lhe no estômago e, excluindo-se, escolheu enforcar-se.

POESIA ANIMAL - O "D"


DONINHA:

A doninha dizia distinguir disfarces, disparates e disfunções. Destemida e determinada, dialogava esta destreza diariamente. Denunciava, desta dinâmica, a demência dura de que dependia. Deixou-se dominar pela doença, danificando o discurso decorado com dedicação. Decidiu dramatizar a durabilidade dos dias, ditando a derrota de Deus. Despiu-se e deambulou com dormência e descrédito. Doravante, deverá disfarçar-se sem demora nos disparates que a demência lhe determina. Depois, despojada, dedicar-se-à docilmente à dor.

POESIA ANIMAL - O "C"


CENTOPEIA:

A centopeia corria com carradas de cafeína e cigarros, no contínuo costume de concretizar certezas. Cercava-se de um certo cuidado e a consciência cruel cravada no cérebro. Contudo, a cidade continha concorrência, e a canalha comercial confunde-se no comum caminho da competência. Confusa, caiu no consumo de conhecimento e começou a controlar o correr, cedendo-o a caminhadas calmas que a conduziram à comicidade da companhia de cadáveres. Sem culpa de correr, contente, continuou o seu caminho.

POESIA ANIMAL - O "B"

BARATA:

A barata bebia bagaço e banalizava bacanais. Brotava um bafo a bafio e balizava o banditismo entre o barulhento e o barroco. Bazófias e bebedeiras eram bibelots do seu baú. Bissexual, boémia e bulimica burocratizava o bairrismo básico do batoteiro do botequim. À barata bastou-lhe um bluff com baralho para bramir brutalmente ao bioterrorismo!

POESIA ANIMAL - O "A"

ABUTRE:

O abutre acordou aterrorizado com a angústia que adivinhava o arquivamento da alma. A alternativa era acreditar que o aumento antagónico, desta abertura para o além, lhe aliviaria a amargura atroz que o arqueava. Assim, aderiu a adivinhos, amêndoa amarga e analgésicos que amenizavam os ácidos que lhe afogavam o âmago. Alheio, adormeceu.

Assassínio em massa

Numa noite, daquelas em que apenas o vento se aventura a passear sozinho, estavam dois homens (mais gastos por dentro do que por fora) sentados em bancos igualmente altos em extremos de um mesmo balcão. A luz era velha, como a puta, amarela do tempo passado no fumo daquele cadeirão decadente de bar de princípio de século. Os homens eram alheios ao ambiente rotineiro, mas de olhos profundos no copo.
Nada parecia estar fora do lugar, nem a puta.
As horas passavam religiosamente marcadas pelo relógio desproporcional. Eram pesadas, lentas, até usadas. Mas aquele era o único sítio aberto para aquecer o âmago. Existiam, ali, sempre grandes e calorosas conversas; aliás era esse o princípio indispensável da rotina; mas sem os presentes conhecerem o som da voz do outro que enchia a sala. Apenas a gargalhada da puta fazia companhia ao ruído do vento. Talvez por isso os seus corpos se acomodassem nas extremidades do triângulo que dava a sua geometria ao bar.
Mas a noite revelou uma magia mal intencionada. Uma sede desmesurada. Uma geometria que deixava o triângulo amoroso no plano da miragem.
As coisas ganharam uma vida própria, a rotina já não as controlava; nem as gargalhadas dramáticas da puta os devolviam à realidade habituada.
Alguma coisa acontecerá naquele lugar de película riscada.
Nada estava fora do lugar, mas o curioso é que nem a puta soava.
Cambaleavam duas linhas…daquelas sem pormenores e indícios de unicidade, que num esforço rugoso desenhavam um cubo frágil. Gelado caía num plim, que era mais um plum (e por vezes um splash) intermitentemente pela mão que, habituada, joga um póquer de olhares com o desejo de não se exceder nem ficar em falta.
Reunido numa companhia decadente, torna-se altruísta cedendo a sua geometria e alterando a sua existência. Mistura-se, atenua a força e a sua frescura acende o comprido rastilho da dor.
E...mais um!
Para adormecer o cérebro, enganá-lo e dissuadi-lo para um comportamento que não este. Fugas nas ideias que apenas criam imagens distorcidas no tempo que já nem se controla, através do vidro baço e riscado; chove.
E que grande é o dilúvio que me acontece por dentro.

A calçada era gasta e fria na água que lhe escorria para dentro.
A noite não anunciava nada mais que o barulho dos carros apressados contra os passeios. E uma velha passou… mas ficou aqui, presa na textura textual dos seus cabelos já fracos pela cor que lhe cai bem. Escorria-lhe na garganta o sabor áspero do tempo. A cortiça estanque assim ficou e com pouca nostalgia era lembrada na cor rubi que se aninhava no estômago. Batem ás portas da memória…agora que já não morava lá ninguém que atendesse o ruído.
E as mulheres passam bonitas como pérolas num reles fio de côco… frias, cruas, inquietas…convite perfeito à clavícula instável na ponta dos ossos que estalam a incentivar o músculo ao pecado.
Sinto-me leve como as folhas de Outono que caem e…fico assim…colada a ti, calçada fria e gasta.



Era uma sala enorme onde perdia os dias enrolada na névoa que morava lá fora. O vento batia na janela como a força do amante que atira a pedra para anunciar a sua presença. Mas o ruído era apenas o de um embalar triste e arrastado que lhe fazia companhia ao riso. Lentamente substituía  as imagens por meras silhuetas objectivas e delineadas; e enquanto enfrentava este cessar num deixa andar inquietante, a tortura era imposta de forma baça na pupila que outrora fora ela.
Bem devagar surgiam os primeiros agudos que estilhaçavam a forma de ouvir ao longe o agonizante grito das gaivotas.
Perdeu-se a textura do sangue que voluntariamente insistia em correr e ficar espesso no corpo mole e desfigurado. Coisas que acontecem à beleza que arde e finda em cinzas; desconhecidas e irreconhecíveis.
Ninguém saberia o sucedido não fosse a tormenta de um espírito mais inquieto e disponível à glória desta arte.
Enchia um copo em ritual de quem enche um corpo; e é extraordinário como ambos caem na desgraça de uma gargalhada forçada pela fachada de um rótulo, ainda que credível.
Já passaram semanas e ainda aqui com a força dos dedos na cortiça imóvel e inanimada que lhe parece ser o mais forte dos rivais. As golpadas invertem qualquer tentativa em degustar o banquete; e é amargo e chega a ser ácido o cheiro inalado e travado no já gasto deambular das horas. Passo a passo sente o peso do corpo que definha no ronronar já passado das dádivas eternas. É um peso que pesa de dentro para fora, é um peso morto por dentro, é o peso de dentro que manda o peso de fora perder-se. Pesada cai e num impulso instintivo não mais se levanta. Fica enrolada em si no chão daquela sala enorme, onde as paredes ganham vida e avançam para lhe oferecer protecção tumular. Tristes ficam os dias e perdidas as gaivotas que se atiram como pedras à janela da sala que deixou de existir.
Pressa, tanta pressa tem agora o amante em chorar!

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Saía apenas de noite porque o ar lhe parecia mais fácil de respirar. Assim não lhe pesava a culpa nas órbitas que se assemelhavam a duas tinas de sangue. Corria a cidade numa calma que lhe escondia a ansiedade e lhe parava o relógio do sempre certo amanhecer. Saciava a loucura que lhe apertava na nuca em cada corpo depositado em cada esquina menos geométrica ou num beco mais escuro. Quando voltava a casa levava colado à saliva a galopante respiração. Sofria um momento de descarga; esgotara a adrenalina; um respirar agudo relembrava-lhe a dor no peito e deitava-se, caído sobre a cama perdendo mais um dia.
Há uma noite que sai apostando consigo que iria vencer os desígnios que a noite lhe reservava e que apenas sairia para apanhar ar e aliviar o nódulo que se apoderava da laringe. Perdeu. Assim que subiu as escadas que o separavam da praça da igreja, viu deitado em papelão e sacos de plástico um corpo sujo pelo tempo. Calmamente aproximou-se como se levasse nos gestos compaixão. Olhou demoradamente para aquele pedaço de carne imóvel como se procurasse um sinal que lhe travasse o desejo. Rodopiou a cabeça em movimentos fragmentários controlando a praça na certeza que estavam sós. Uma paz invadiu-lhe o sobrolho que desistiu de franzir. Fintou de novo o corpo acompanhando este gesto com um sorriso e uma lâmina afiada que rasgou a carne que se encontrava a dormir na praça. Abriu o corpo, mas hesitou ao retirar-lhe os órgãos; afinal aquele ser não o tinha condecorado com um último olhar de dor. Então? De que lhe serviria? Levantou-se e cambaleou até casa. As escadas que habitualmente eram transpostas com uma facilidade jovial, serviam agora como lâminas aguçadas que se enterravam no peito a cada passo. Vinha-lhe à boca um sabor a azedo que lhe curvava ainda mais o corpo. E as escadas nunca mais chegavam ao topo. E parou-lhe a crueldade em cada movimento menos sólido que lhe arriscava a queda. Abriu a porta com a dor aguda na ponta dos dedos. Sentiu-se sufocar. Cambaleou até à casa de banho e ajoelhou-se junto ao imundo bidé oferecendo-lhe o cuspo ensanguentado pelo mal que lhe habitava o estômago. Sentia uma agonia que lhe lembrava o seu primeiro crime. Duas mãos que apertavam a garganta com uma força crescente até ao cansaço que demorava a chegar ao antebraço. Aflito apressou-se para o quarto. Sentiu um formigueiro a instalar-se no corpo e condenou a sua última vitima com a culpa de não lhe ter dado forças. Caiu sobre a cama e perdeu todos os dias que se seguiram. Morreu sem nunca encontrar sepulcro.