Era uma sala enorme onde
perdia os dias enrolada na névoa que morava lá fora. O vento batia na janela
como a força do amante que atira a pedra para anunciar a sua presença. Mas o
ruído era apenas o de um embalar triste e arrastado que lhe fazia companhia à
dor e ao riso.
Pela janela, o mar gelava
a areia num incessante vai e vem. Cenário inóspito pela forma como a cor do céu
e do mar se juntavam num tom zangado e escuro na turbulência das ondas e no
troar das nuvens que carregavam quanta água carrega o mar.
Naquele dia, apenas uma
velha se atrevia a deixar pegadas na areia. Da janela da sala, temeu! Pois ao
longe a tez da velha parecia feita de barro secular, ressequido e gretado. No
entanto, transbordava uma jovialidade que desafiava o gigante mar. A ligeireza com
que percorria a areia dura e gelada não era desfeita pelo bater violento da
onda que morria aos seus pés. Parecia ter no corpo a perícia secular do
conhecimento. Ainda assim, o olhar aflitivo que a fintava sucumbia à
interrogação. E se o seu rosto se desfizesse? E se a maresia se colasse às
rodelas escarlate que rompiam na tez em timidez?
A preocupação, ainda que
processando a imagem em câmara lenta, durou apenas três ruidosos rebentamentos;
depois a mente levou-a para outro lugar; ainda que continuasse naquela sala
enorme.
Já há muito que estas
viagens eram aceites. Como o movimento perpétuo do mar, num vai e vem, também a
sua mente impulsionava o raciocínio a esse vai e vem, a essa viagem
incessantemente presente; apenas se separava da imagem do mar por não manter a
mesma constância, a mesma duração repetida na cadência.
A tortura de manter viva
a consciência que se perdia era acompanhada pela certeza que a loucura não
tardaria a chegar. Por isso, preferia deixá-la deambular sem a companhia do
porquê.
Lentamente substituía as
imagens por meras silhuetas objectivas e delineadas; e enquanto enfrentava este
cessar num deixa andar inquietante, a tortura era imposta de forma baça na
pupila que outrora fora ela.
À volta não acontecia
quase nada quando o que lhe surgia por dentro entrava na vertiginosa velocidade
do sentir.
Felizmente, também este
episódio não demorou mais que um momento.
Bem devagar surgiam os
primeiros agudos que estilhaçavam a forma de ouvir ao longe o agonizante grito
das gaivotas.
Seria apenas o estalar do
soalho antigo daquela sala enorme. Momentaneamente sentiu um arrepio no susto
provocado pelo som, que lhe fez o coração mudar-se para a garganta. Não sentia
receio, mas antes a tristeza profunda que assemelhava o estalar à dor de perda
que sentia dentro. Nada estalava tão alto como o seu coração abandonado, mas
havia ali uma semelhança, um companheirismo inesperado que apenas angústia lhe
trazia aos dias.
Crescia no fundo do copo
a sensação de vazio que acompanha a alma nas noites mais sombrias. Havia que
resolver esse obstáculo. Encheu o copo. E parou a espera na anestesia do corpo
e, sentada, ficou, parando o tempo na pior frame da fita.
A cortiça imóvel assim
ficou e com pouca nostalgia era lembrada na cor rubi que se aninhava no
estômago. Batem às portas da memória…agora que já não morava lá ninguém que
atendesse o ruído.
Um silêncio cruel
instalou-se. Pensou que fosse o fim a chegar. Bebeu de uma assentada e preparou
o corpo para o abandonar. Demorou apenas um momento, mas a crueldade na
ausência do som foi tão poderosa que, quando interrompida, o ouvido levou tempo
e o cérebro morou em entender o que acontecia.
Quando a nitidez se
impôs, revelou a voz de um gaiulo, sabido, que treinava o pregão para o
sustento da época que se aproximava:
“ Aproveitem! Conquilhas grandes! Quando abrem no tacho parecem
as asas de uma gaivota! De grandes que são! Aproveitem!”
“ Conquilha toda grande! São maiores que eu! Grandes e
fresquinhas!”
Esboçou um sorriso pálido
e o ouvido escolheu não mais ouvir. Um suspiro revelava a desilusão de ainda
pertencer ali. E a sala enorme parecia perder a sua altivez, por uma fracção no
tempo, parecia vê-la pelo olhar relativo de um adulto. E o tempo passou.
A chuva caia do céu como
se peneirada pelas redes de um pescador. Ninguém vivo poderia ter memória daquele
dilúvio áspero e nervoso que condensava o ar. Era a chuva que trazia a noite a
passos largos, que se instalava na nitidez dos relâmpagos que irrompiam o céu
em grande alarido pirotécnico. O mundo estremecia na presença daquela natureza
irada.
Na sala, enorme, apenas
um relógio de pé se mantinha. Um relógio antigo, herança do avô paterno, que
dava horas ainda antes desta estar certa; curiosamente, como o avô que gritava com
altivez antes de pronunciar a única frase do discurso que aludia à sua razão,
esta, que entoava em quase mudez. Para o seu avô, a discussão era ganha nas
primeiras entoações; pois a paixão com que se proferia as palavras, no seu
entender, ganhava à placidez com que se dava a estocada final numa frase
inquestionável. Tinha o saber sobre todas as coisas e, sem adversário à altura,
o único gozo que saboreava numa discussão era o de poder vociferar barbaridades
antes de finalizar com a coerência do conhecimento.
Fintou o relógio, num dos
passeios agitados com que o olhar intervalava o infinito. Não foi preciso muito
tempo para que aquele tempo lhe penetrasse a consciência de forma abrupta. Era
a sua infância televisionada num filme mudo sem direito a legendas.
Reproduziram-se uma sequência de flashback e fowards, sem regra cronológica ou
importância. Apenas o olhar sorridente e cheio de vida daquela menina que
crescia e voltava à meninez, se mantinha inalterado. Uma imagem parou,
demorando mais que o necessário ao seu entendimento. A menina que corria
livremente pela praia, aproximando e afastando-se do mar; numa brincadeira
íntima envolta em gargalhadas, permaneceu o olhar para a objectiva. Assim ficou
estática a olhar directamente para si. Não era um olhar infantil, mas
divorciado de qualquer dúvida. Era um olhar sábio que aproveitava a felicidade
daquele momento por compreender a sua frugalidade.
Os cantos da boca
subiram-se-lhe e o peito encheu-se de ar; houve dor e a lágrima desceu até aos
lábios que esmoreceram a emoção. Interrompeu-se a quietude quando o cheiro a
vinho lhe povoou a memória com o velho caseiro que partira ao mesmo tempo que a
riqueza perdera lugar naquela casa.
Sentia, agora, o tempo
líquido colado à língua num gosto forte ao palato. As palavras saiam
atabalhoadas no círculo do cálice domado pelo barril do léxico. Suada nos
tremores da noite que se instala, anunciando mais que mera nortada; ainda que
na génese pareça outro tipo de violência.
Corta a respiração num
grito mudo que transforma na gota que escorre na protuberância gretada no
vermelho quente dos lábios que a sorvem.
Reunida nesta companhia
decadente, torna-se altruísta cedendo a sua geometria e alterando a sua
existência. Mistura-se, atenua a força e o seu orgulho acende o comprido
rastilho da dor.
E mais um! Para adormecer
o cérebro, enganá-lo e dissuadi-lo para um comportamento que não este, que não
esta dor em potência! Mas o que ganha são apenas frágeis fugas nas ideias;
fugas que criam imagens distorcidas do tempo, num tempo que já não se controla
e, através do vidro baço, daquela sala enorme, chove. E que grande é o dilúvio
que lhe acontece por dentro.
Perdeu-se a textura do
sangue que voluntariamente insistia em correr e ficar espesso no corpo mole e
desfigurado. Coisas que acontecem à beleza que arde e finda em cinzas;
desconhecidas e irreconhecíveis. Como as cartas de amor que, traídas pelo
tempo, se queimam no aro de fogo em que o artista desafia a vida num circo de
orgulho e sofrimento.
Ninguém saberia o
sucedido não fosse a tormenta de um espírito mais inquieto e disponível à
glória desta arte.
Havia ali uma sede de
boca seca que renunciava alimentar-se de outra coisa. Havia ali paragens no
tempo que não eram preenchidas por aquele corpo ávido de transporte. Havia ali
névoas que se enrolavam a ela com a força do desejo da saliva do amante. Havia
partes de si que não fugiam ainda que o desejo fosse o de fugir para estar mais
perto daquele que a desprezara. Havia ali imagens que se colavam com a força
dos cheiros e do ruído que a ausência traz. E era assim que ela acontecia, naquela
sala enorme. E era assim que ela sucumbia, naquela sala enorme, a mais um trago
amargo.
Enchia um copo em ritual
de quem enche um corpo; e é extraordinário como ambos caem na desgraça de uma
gargalhada forçada pela fachada de um rótulo, ainda que credível.
Coando as horas,
destilavam-lhe os dedos agarrados ao gargalo da garrafa, num espaço em que a
saudade despedia o romantismo em gestos febris e onde a alma encontrava
depurativo alambique.
Já passaram semanas e
ainda aqui com a força dos dedos na cortiça imóvel e inanimada que lhe parece
ser o mais forte dos rivais.
Lá fora o mar já não
rugia, sussurrava apenas a melancolia que pejava o ar.
O céu copiava a acalmia
até ao horizonte num azul que, de celeste, fazia inveja aos anjos.
A areia tornara-se pálida
e solta pelas carícias com que o sol a presenteava.
Tudo era paz e harmonia
num cenário que, de idílico, até a velha trazia, de novo, à praia. No mesmo
passo convicto com que desafiara a braveza do mar, percorria, agora, a praia
envolta na mesma destreza e desdém.
A alvorada era assim
corrompida pelos corpos sujos e marcados pelo tempo dos pescadores que
regressavam a terra com o rosto desiludido pelo mar.
O único que mantinha
jovialidade era o cachopo; agora amadurecido pela rudeza do inverno. Rejubilava
com a conquilha apanhada durante a curvatura do sol e as entranhas da areia.
Nos olhos brilhavam-lhe os sonhos que esperava comprar com o saldo da jorna.
Sentado no paredão, controlava a afluência humana, que aumentava com a altura
do sol. Aguardava, pacientemente, como um cão de caça bem treinado, que a praia
se compusesse de corpos, e carteiras, para anunciar o seu pregão. Pregão
estudado à exaustão para que fizesse jus ao seu tão precioso tesouro que
oferecia por tostões. Pregão que anunciava como a única coisa que o separava da
conquista dos seus ensejos.
Só naquela sala enorme se
mantinha a indiferença do bom tempo.
O vidro da janela, de
baço, quebrava a luz que o sol insistia em fazer entrar. Os raios fustigavam a
vidraça, mas atentavam apenas a sua temperatura. A luz não penetrava senão baça
e disforme. Era conquista suficiente para desvendar a grotesca realidade que a
sala continha dentro. Aquele corpo fechado na dor que um dia sentira.
Abandonado de tudo. Esquecido de si no rasto que o sal deixara no rosto à custa
das lágrimas que ai correram e secaram.
Golpeava a vida em cada
trago que ingeria.
Inchava-lhe a garganta
adivinhando a agonia que se instalaria no estômago, já calcinado pelos taninos
que tornavam, simultaneamente, a língua áspera.
Mas nada superava o
aperto no peito, o nó que ocupava o lugar do que apenas batia a custo, para
bombear o escasso sangue que ainda insistia a correr por dentro.
Há muito que a ilusão
perdera ali a beleza. Mas a verdade era negada no cheiro a éter que preenchia o
ar.
Já não era o abandono que
a ostracizava àquela clausura. Já parecia ter acontecido há tanto tempo que em
momentos de rara lucidez achava estar a perder o tempo de outra vida. Mas nem
esta forte sensação a coagia a sair dali. Com a mesma consciência se deixava
ficar. Não por falta de vontade, mas porque o vazio lhe trazia mais companhia
que a imagem que os lamentos das gaivotas lhe traziam lá de fora.
Obrigava o corpo em
sentidos opostos. Obrigava-o a ceder à teimosia de continuar vivo e,
intervaladamente, obrigava-o a sentir. Ainda que este sentir fosse para si a
pena, o castigo de ter amado tão profunda e totalmente. Já não era nada esse
sentir. Não passava de tentativas vãs de obrigar o corpo à dor da alma, porque
agora o sofrimento não poderia ser mais físico. Exclusivamente físico. E isso
era demasiado insuportável para admitir.
Então, o engano
começou-lhe a surgir como alternativa passível de eficácia. Há muito que a
coerência tinha abandonado o seu discernimento; parecia-lhe uma descoberta de
ouro que escondia de si mesma com receio de que se ponderasse a conclusão a que
chegara, esta perderia a força e o sucesso.
Não poderia jamais
permitir que o corpo tísico favorecesse o esquecimento do que fora cataclismo
para os males da sua alma; o desdém absoluto daquele que amara tão
inteiramente.
Ao tornar-se demasiado
consciente na conversa que opera dentro de si, desiste. A sede é imensa e não
mais a quer prologar. A custo procura substituir a garrafa vazia pela última
daquele lote. Mas isto leva uma aparente eternidade. O esqueleto, que sustenta
o invólucro que a forma, em mórbida dificuldade se arrasta. O peso da garrafa é
ainda maior. E isto gera outra distracção. Mas a sede desmesurada está sempre
presente. É quando um nó de veludo bem apertado se instala no estômago já
cansado e a saliva cola-se aos minutos, pois a ideia de ficar assim, sem aparo
de mais um trago, traz-lhe à memória o que os dias poderiam custar a passar.
Os dedos tacteiam o calor
emanado que embacia o cheiro do ar. Fica presa a essas pontas de dedos que
demora a reconhecer como suas. Depois sucumbe ao cansaço daquele movimento.
Lá fora a vida passa
alheia a esta história.
A azáfama dos veraneantes
não permite outra atenção que não à da rotina dos protectores solares, da
preocupação do chapéu e do rejúbilo da temperatura da água.
Nem as crianças, mais
curiosas por natureza, reparam naquela janela. Entretidas por entre conchinhas
e castelos de areia, alheiam-se do atrevimento, e a curiosidade pelo
desconhecido foca-se apenas no mundo aquático que exploram entre o pedaço de
pão carregado de manteiga que lambem avidamente.
Voltam as gaivotas que se
afastam do mar e em negro presságio sobrevoam a casa. Soltam gemidos agudos que
ecoam como que em socorro pelo que definha naquela sala enorme; mas nem os
ouvidos mais treinados lhe reconhecem o choro.
E na sala tudo continua
igual.
Até a imensidão
encontraria ali lugar, tal é o pouco espaço que aquele corpo ocupa já
desabitado de esperança. Oco e frágil.
Acorda lentamente e
intermitentemente volta a jogar a mão à sua última aposta. Com a garrafa cheia
no seu regaço olha o mar uma última vez. Talvez aquela imensa massa a tivesse
querido, mas agora era tarde para aquele corpo gasto lhe encontrar sepulcro. À
praia, apinhada de gente, não encontrava alivio de ali deixar entregue o que um
dia fora cheio de amor.
Volta à tentativa gorada
de libertar o liquido acre para molhar a boca desértica. Demora todo o tempo
que o resto da sua força permite.
No entanto, as golpadas
invertem qualquer tentativa em degustar o banquete; e é amargo e chega a ser
ácido o cheiro inalado e travado no já gasto deambular das horas.
Passo a passo sente o
peso do corpo que definha no ronronar já passado das dádivas eternas. É um peso
que pesa de dentro para fora, é um peso morto por dentro, é o peso de dentro
que manda o peso de fora perder-se.
Pesada, cai e num impulso
instintivo não mais se levanta. Fica enrolada em si no chão daquela sala que
deixa de ser enorme, onde as paredes ganham vida e avançam para lhe oferecer
protecção tumular.
Lá fora, nem os mais
astutos percebem e tudo parece permanecer igual.
Mas tristes ficam os dias
e perdidas as gaivotas que se atiram como pedras à janela da sala que deixou de
existir.
Pressa, tanta pressa tem
agora o amante em chorar.