sábado, 22 de junho de 2013

Mar me quer ou o coração é uma praia

Era uma sala enorme onde perdia os dias enrolada na névoa que morava lá fora. O vento batia na janela como a força do amante que atira a pedra para anunciar a sua presença. Mas o ruído era apenas o de um embalar triste e arrastado que lhe fazia companhia à dor e ao riso.
Pela janela, o mar gelava a areia num incessante vai e vem. Cenário inóspito pela forma como a cor do céu e do mar se juntavam num tom zangado e escuro na turbulência das ondas e no troar das nuvens que carregavam quanta água carrega o mar.
Naquele dia, apenas uma velha se atrevia a deixar pegadas na areia. Da janela da sala, temeu! Pois ao longe a tez da velha parecia feita de barro secular, ressequido e gretado. No entanto, transbordava uma jovialidade que desafiava o gigante mar. A ligeireza com que percorria a areia dura e gelada não era desfeita pelo bater violento da onda que morria aos seus pés. Parecia ter no corpo a perícia secular do conhecimento. Ainda assim, o olhar aflitivo que a fintava sucumbia à interrogação. E se o seu rosto se desfizesse? E se a maresia se colasse às rodelas escarlate que rompiam na tez em timidez?
A preocupação, ainda que processando a imagem em câmara lenta, durou apenas três ruidosos rebentamentos; depois a mente levou-a para outro lugar; ainda que continuasse naquela sala enorme.
Já há muito que estas viagens eram aceites. Como o movimento perpétuo do mar, num vai e vem, também a sua mente impulsionava o raciocínio a esse vai e vem, a essa viagem incessantemente presente; apenas se separava da imagem do mar por não manter a mesma constância, a mesma duração repetida na cadência.
A tortura de manter viva a consciência que se perdia era acompanhada pela certeza que a loucura não tardaria a chegar. Por isso, preferia deixá-la deambular sem a companhia do porquê.
Lentamente substituía as imagens por meras silhuetas objectivas e delineadas; e enquanto enfrentava este cessar num deixa andar inquietante, a tortura era imposta de forma baça na pupila que outrora fora ela.
À volta não acontecia quase nada quando o que lhe surgia por dentro entrava na vertiginosa velocidade do sentir.
Felizmente, também este episódio não demorou mais que um momento.
Bem devagar surgiam os primeiros agudos que estilhaçavam a forma de ouvir ao longe o agonizante grito das gaivotas.
Seria apenas o estalar do soalho antigo daquela sala enorme. Momentaneamente sentiu um arrepio no susto provocado pelo som, que lhe fez o coração mudar-se para a garganta. Não sentia receio, mas antes a tristeza profunda que assemelhava o estalar à dor de perda que sentia dentro. Nada estalava tão alto como o seu coração abandonado, mas havia ali uma semelhança, um companheirismo inesperado que apenas angústia lhe trazia aos dias.
Crescia no fundo do copo a sensação de vazio que acompanha a alma nas noites mais sombrias. Havia que resolver esse obstáculo. Encheu o copo. E parou a espera na anestesia do corpo e, sentada, ficou, parando o tempo na pior frame da fita.
A cortiça imóvel assim ficou e com pouca nostalgia era lembrada na cor rubi que se aninhava no estômago. Batem às portas da memória…agora que já não morava lá ninguém que atendesse o ruído.
Um silêncio cruel instalou-se. Pensou que fosse o fim a chegar. Bebeu de uma assentada e preparou o corpo para o abandonar. Demorou apenas um momento, mas a crueldade na ausência do som foi tão poderosa que, quando interrompida, o ouvido levou tempo e o cérebro morou em entender o que acontecia.
Quando a nitidez se impôs, revelou a voz de um gaiulo, sabido, que treinava o pregão para o sustento da época que se aproximava:
     “ Aproveitem! Conquilhas grandes! Quando abrem no tacho parecem as asas de uma gaivota! De grandes que são! Aproveitem!”
     “ Conquilha toda grande! São maiores que eu! Grandes e fresquinhas!”
Esboçou um sorriso pálido e o ouvido escolheu não mais ouvir. Um suspiro revelava a desilusão de ainda pertencer ali. E a sala enorme parecia perder a sua altivez, por uma fracção no tempo, parecia vê-la pelo olhar relativo de um adulto.  E o tempo passou.
A chuva caia do céu como se peneirada pelas redes de um pescador. Ninguém vivo poderia ter memória daquele dilúvio áspero e nervoso que condensava o ar. Era a chuva que trazia a noite a passos largos, que se instalava na nitidez dos relâmpagos que irrompiam o céu em grande alarido pirotécnico. O mundo estremecia na presença daquela natureza irada.
Na sala, enorme, apenas um relógio de pé se mantinha. Um relógio antigo, herança do avô paterno, que dava horas ainda antes desta estar certa; curiosamente, como o avô que gritava com altivez antes de pronunciar a única frase do discurso que aludia à sua razão, esta, que entoava em quase mudez. Para o seu avô, a discussão era ganha nas primeiras entoações; pois a paixão com que se proferia as palavras, no seu entender, ganhava à placidez com que se dava a estocada final numa frase inquestionável. Tinha o saber sobre todas as coisas e, sem adversário à altura, o único gozo que saboreava numa discussão era o de poder vociferar barbaridades antes de finalizar com a coerência do conhecimento.
Fintou o relógio, num dos passeios agitados com que o olhar intervalava o infinito. Não foi preciso muito tempo para que aquele tempo lhe penetrasse a consciência de forma abrupta. Era a sua infância televisionada num filme mudo sem direito a legendas. Reproduziram-se uma sequência de flashback e fowards, sem regra cronológica ou importância. Apenas o olhar sorridente e cheio de vida daquela menina que crescia e voltava à meninez, se mantinha inalterado. Uma imagem parou, demorando mais que o necessário ao seu entendimento. A menina que corria livremente pela praia, aproximando e afastando-se do mar; numa brincadeira íntima envolta em gargalhadas, permaneceu o olhar para a objectiva. Assim ficou estática a olhar directamente para si. Não era um olhar infantil, mas divorciado de qualquer dúvida. Era um olhar sábio que aproveitava a felicidade daquele momento por compreender a sua frugalidade.
Os cantos da boca subiram-se-lhe e o peito encheu-se de ar; houve dor e a lágrima desceu até aos lábios que esmoreceram a emoção. Interrompeu-se a quietude quando o cheiro a vinho lhe povoou a memória com o velho caseiro que partira ao mesmo tempo que a riqueza perdera lugar naquela casa.
Sentia, agora, o tempo líquido colado à língua num gosto forte ao palato. As palavras saiam atabalhoadas no círculo do cálice domado pelo barril do léxico. Suada nos tremores da noite que se instala, anunciando mais que mera nortada; ainda que na génese pareça outro tipo de violência.
Corta a respiração num grito mudo que transforma na gota que escorre na protuberância gretada no vermelho quente dos lábios que a sorvem.
Reunida nesta companhia decadente, torna-se altruísta cedendo a sua geometria e alterando a sua existência. Mistura-se, atenua a força e o seu orgulho acende o comprido rastilho da dor.
E mais um! Para adormecer o cérebro, enganá-lo e dissuadi-lo para um comportamento que não este, que não esta dor em potência! Mas o que ganha são apenas frágeis fugas nas ideias; fugas que criam imagens distorcidas do tempo, num tempo que já não se controla e, através do vidro baço, daquela sala enorme, chove. E que grande é o dilúvio que lhe acontece por dentro.
Perdeu-se a textura do sangue que voluntariamente insistia em correr e ficar espesso no corpo mole e desfigurado. Coisas que acontecem à beleza que arde e finda em cinzas; desconhecidas e irreconhecíveis. Como as cartas de amor que, traídas pelo tempo, se queimam no aro de fogo em que o artista desafia a vida num circo de orgulho e sofrimento.
Ninguém saberia o sucedido não fosse a tormenta de um espírito mais inquieto e disponível à glória desta arte.
Havia ali uma sede de boca seca que renunciava alimentar-se de outra coisa. Havia ali paragens no tempo que não eram preenchidas por aquele corpo ávido de transporte. Havia ali névoas que se enrolavam a ela com a força do desejo da saliva do amante. Havia partes de si que não fugiam ainda que o desejo fosse o de fugir para estar mais perto daquele que a desprezara. Havia ali imagens que se colavam com a força dos cheiros e do ruído que a ausência traz. E era assim que ela acontecia, naquela sala enorme. E era assim que ela sucumbia, naquela sala enorme, a mais um trago amargo.
Enchia um copo em ritual de quem enche um corpo; e é extraordinário como ambos caem na desgraça de uma gargalhada forçada pela fachada de um rótulo, ainda que credível.
Coando as horas, destilavam-lhe os dedos agarrados ao gargalo da garrafa, num espaço em que a saudade despedia o romantismo em gestos febris e onde a alma encontrava depurativo alambique.
Já passaram semanas e ainda aqui com a força dos dedos na cortiça imóvel e inanimada que lhe parece ser o mais forte dos rivais.
Lá fora o mar já não rugia, sussurrava apenas a melancolia que pejava o ar.
O céu copiava a acalmia até ao horizonte num azul que, de celeste, fazia inveja aos anjos.
A areia tornara-se pálida e solta pelas carícias com que o sol a presenteava.
Tudo era paz e harmonia num cenário que, de idílico, até a velha trazia, de novo, à praia. No mesmo passo convicto com que desafiara a braveza do mar, percorria, agora, a praia envolta na mesma destreza e desdém.
A alvorada era assim corrompida pelos corpos sujos e marcados pelo tempo dos pescadores que regressavam a terra com o rosto desiludido pelo mar.
O único que mantinha jovialidade era o cachopo; agora amadurecido pela rudeza do inverno. Rejubilava com a conquilha apanhada durante a curvatura do sol e as entranhas da areia. Nos olhos brilhavam-lhe os sonhos que esperava comprar com o saldo da jorna. Sentado no paredão, controlava a afluência humana, que aumentava com a altura do sol. Aguardava, pacientemente, como um cão de caça bem treinado, que a praia se compusesse de corpos, e carteiras, para anunciar o seu pregão. Pregão estudado à exaustão para que fizesse jus ao seu tão precioso tesouro que oferecia por tostões. Pregão que anunciava como a única coisa que o separava da conquista dos seus ensejos.
Só naquela sala enorme se mantinha a indiferença do bom tempo.
O vidro da janela, de baço, quebrava a luz que o sol insistia em fazer entrar. Os raios fustigavam a vidraça, mas atentavam apenas a sua temperatura. A luz não penetrava senão baça e disforme. Era conquista suficiente para desvendar a grotesca realidade que a sala continha dentro. Aquele corpo fechado na dor que um dia sentira. Abandonado de tudo. Esquecido de si no rasto que o sal deixara no rosto à custa das lágrimas que ai correram e secaram.
Golpeava a vida em cada trago que ingeria.
Inchava-lhe a garganta adivinhando a agonia que se instalaria no estômago, já calcinado pelos taninos que tornavam, simultaneamente, a língua áspera.
Mas nada superava o aperto no peito, o nó que ocupava o lugar do que apenas batia a custo, para bombear o escasso sangue que ainda insistia a correr por dentro.
Há muito que a ilusão perdera ali a beleza. Mas a verdade era negada no cheiro a éter que preenchia o ar.
Já não era o abandono que a ostracizava àquela clausura. Já parecia ter acontecido há tanto tempo que em momentos de rara lucidez achava estar a perder o tempo de outra vida. Mas nem esta forte sensação a coagia a sair dali. Com a mesma consciência se deixava ficar. Não por falta de vontade, mas porque o vazio lhe trazia mais companhia que a imagem que os lamentos das gaivotas lhe traziam lá de fora.
Obrigava o corpo em sentidos opostos. Obrigava-o a ceder à teimosia de continuar vivo e, intervaladamente, obrigava-o a sentir. Ainda que este sentir fosse para si a pena, o castigo de ter amado tão profunda e totalmente. Já não era nada esse sentir. Não passava de tentativas vãs de obrigar o corpo à dor da alma, porque agora o sofrimento não poderia ser mais físico. Exclusivamente físico. E isso era demasiado insuportável para admitir.
Então, o engano começou-lhe a surgir como alternativa passível de eficácia. Há muito que a coerência tinha abandonado o seu discernimento; parecia-lhe uma descoberta de ouro que escondia de si mesma com receio de que se ponderasse a conclusão a que chegara, esta perderia a força e o sucesso.
Não poderia jamais permitir que o corpo tísico favorecesse o esquecimento do que fora cataclismo para os males da sua alma; o desdém absoluto daquele que amara tão inteiramente.
Ao tornar-se demasiado consciente na conversa que opera dentro de si, desiste. A sede é imensa e não mais a quer prologar. A custo procura substituir a garrafa vazia pela última daquele lote. Mas isto leva uma aparente eternidade. O esqueleto, que sustenta o invólucro que a forma, em mórbida dificuldade se arrasta. O peso da garrafa é ainda maior. E isto gera outra distracção. Mas a sede desmesurada está sempre presente. É quando um nó de veludo bem apertado se instala no estômago já cansado e a saliva cola-se aos minutos, pois a ideia de ficar assim, sem aparo de mais um trago, traz-lhe à memória o que os dias poderiam custar a passar.
Os dedos tacteiam o calor emanado que embacia o cheiro do ar. Fica presa a essas pontas de dedos que demora a reconhecer como suas. Depois sucumbe ao cansaço daquele movimento.
Lá fora a vida passa alheia a esta história.
A azáfama dos veraneantes não permite outra atenção que não à da rotina dos protectores solares, da preocupação do chapéu e do rejúbilo da temperatura da água.
Nem as crianças, mais curiosas por natureza, reparam naquela janela. Entretidas por entre conchinhas e castelos de areia, alheiam-se do atrevimento, e a curiosidade pelo desconhecido foca-se apenas no mundo aquático que exploram entre o pedaço de pão carregado de manteiga que lambem avidamente.
Voltam as gaivotas que se afastam do mar e em negro presságio sobrevoam a casa. Soltam gemidos agudos que ecoam como que em socorro pelo que definha naquela sala enorme; mas nem os ouvidos mais treinados lhe reconhecem o choro.
E na sala tudo continua igual.
Até a imensidão encontraria ali lugar, tal é o pouco espaço que aquele corpo ocupa já desabitado de esperança. Oco e frágil.
Acorda lentamente e intermitentemente volta a jogar a mão à sua última aposta. Com a garrafa cheia no seu regaço olha o mar uma última vez. Talvez aquela imensa massa a tivesse querido, mas agora era tarde para aquele corpo gasto lhe encontrar sepulcro. À praia, apinhada de gente, não encontrava alivio de ali deixar entregue o que um dia fora cheio de amor.
Volta à tentativa gorada de libertar o liquido acre para molhar a boca desértica. Demora todo o tempo que o resto da sua força permite.
No entanto, as golpadas invertem qualquer tentativa em degustar o banquete; e é amargo e chega a ser ácido o cheiro inalado e travado no já gasto deambular das horas.
Passo a passo sente o peso do corpo que definha no ronronar já passado das dádivas eternas. É um peso que pesa de dentro para fora, é um peso morto por dentro, é o peso de dentro que manda o peso de fora perder-se.
Pesada, cai e num impulso instintivo não mais se levanta. Fica enrolada em si no chão daquela sala que deixa de ser enorme, onde as paredes ganham vida e avançam para lhe oferecer protecção tumular.
Lá fora, nem os mais astutos percebem e tudo parece permanecer igual.
Mas tristes ficam os dias e perdidas as gaivotas que se atiram como pedras à janela da sala que deixou de existir.
Pressa, tanta pressa tem agora o amante em chorar.


segunda-feira, 6 de maio de 2013

ODE

Militante do esquecimento
Perpetua a propaganda
Marcha no tempo cruel
Sem fé nem aliança.

Passa de língua enrolada
Olhos vazios, em loucura
Esconde a névoa anunciada
Nesta noite de amargura.

Vocifera em surdina
As raivas que leva dentro
Queixumes e cobardias
Nem as quer o vento.

Pára de dedo esticado
Apontado o infinito
O éter imobilizado
Preenche mais um vazio.

Cambaleia na sujidade
Perfumando a rua deserta
Não haveria novidade
Não fosse ele poeta.

Sem propósito ou vontade
Apenas as folhas o seguem
A dor e a verdade
Moradia lhe concebem.

Desaparece sem rasto
Atrás do que não vê
O inferno é a eternidade
E ele morre outra vez.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

1º Esboço para Dois Zombies num Copo de Shot

Um homem gasto pelo tempo e pela vida

  • mãos decrepitas
  • olheiras e duplas olheiras
  • boca descaída
frequenta diariamente o mesmo bar numa vila despovoada.
Uma noite entra no bar para o encontrar cheio de homens contratados para trabalhar nas minas de ouro, descobertas a poucos quilómetros da vila.
Compra uma garrafa de Bourbon  e vai para casa.
Bebe, sozinho, no alpendre da sua casa com vista para os campos de minas de ouro.
Devaneia palavras.
Adormece.
Acorda com um calafrio no estômago.
O tempo parece ter parado.
Sente um aperto no peito.
Enche o copo de shot com bourbon.
Bebe.
Repete 3 vezes.
Continua a não ouvir nada, mas é um silêncio que o ensurdece.
Leva as mãos aos ouvidos.
Levantasse e cambaleia.
Detrás da porta de casa retira a caçadeira e senta-se, novamente no alpendre, a fintar o nada.
Dor aguda nos ouvidos.
Mais um copo de bourbon.
Dor aguda no peito.
Mias um copo de bourbon.
Passam vultos à sua frente que lhe restauram a audição. Mas a velocidade com que os vultos passam deixam-o agitado.
Mais um copo de bourbon.
Vultos que passam velozmente.
Mais um copo de bourbon.
A ansiedade e medo fazem com que dispare a caçadeira contra o vazio.
O ruído volta a ensurdecê-lo. Mãos aos ouvidos.
Comprime contra o corpo a caçadeira.
Pega na garrafa vazia e em desespero aponta a caçadeira à garganta, com o corpo da caçadeira preso entre as pernas. Olha o céu estrelado e prime o gatilho.
Nada.
Prime novamente.
Nada.
Grita e corre para o vazio...onde ganha velocidade.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

POESIA ANIMAL



ABUTRE

O abutre acordou aterrorizado com a angústia que adivinhava o arquivamento da alma. A alternativa era acreditar que o aumento antagónico, desta abertura para o além, lhe aliviaria a amargura atroz que o arqueava. Assim, aderiu a adivinhos, amêndoa amarga e analgésicos que amenizaram os ácidos que lhe afogavam o âmago. Alheio, adormeceu.

BARATA

A barata bebia bagaço e banalizava bacanais. Brotava um bafo a bafio e balizava o banditismo entre o barulhento e o barroco. Bazófias e bebedeiras eram bibelots do seu baú. Bissexual, boémia e bulímica burocratizava o bairrismo básico do batoteiro do botequim. À barata bastou-lhe um bluff com baralho para bramir brutalmente ao bioterrorismo!

CENTOPEIA

A centopeia corria com carradas de cafeína e cigarros, no contínuo costume de concretizar certezas. Cercava-se de um certo cuidado; e a consciência cruel cravada no cérebro. Contudo, a cidade continha concorrência, e a canalha comercial confundia-se no comum caminho da competência. Confusa, caiu no consumo de conhecimento e começou a controlar o correr, cedendo-o a caminhadas calmas que a conduziram à comicidade da companhia de cadáveres. Sem culpa de correr, contente, continuou o seu caminho.

DONINHA

A doninha dizia distinguir disfarces, disparates e disfunções. Destemida e determinada, dialogava esta destreza diariamente. Denunciava, nesta dinâmica, a demência dura de que dependia. Deixou-se dominar pela doença, danificando o discurso decorado com dedicação. Decidiu dramatizar a durabilidade dos dias, ditando a derrota de Deus. Despiu-se e deambulou com dormência e descrédito. Doravante, deverá disfarçar-se sem demora nos disparates que a demência lhe determina. Depois, despojada, dedicar-se-à docilmente à dor.

ELEFANTE

O elefante estava extremamente envolvido em empresas de espionagem. Equacionava educar essa elite, elevando-a a estatuto eloquente. Estranhava, no entanto, o estrago emergente de enfatizar emoções. Encarregou-se de enlatar elaboradas ervas e encharcou-se em etanol. Eclipsou num embalar estranho e elegeu errar, para educativamente emoldurar o enlace. Entretanto, o esófago esponjoso estampou-se-lhe no estômago e, excluindo-se, escolheu enforcar-se.

FORMIGA

A formiga fotografava famosos. Frequentava festas formidáveis e forçava-se a frenesins familiares. Firme e faladora, folheava de forma fugaz folhetos com figuras formosas. Fumava com fervor, fantasiando fazer filmes fortes que fatalmente fossem fogo para os fracos. Focou firmemente a frase que fugia do formato final. Figurativamente, a faca fintava-lhe a forma fragilizada pelos fármacos. Fictícia era a firmeza que frequentemente farejava na fiel fuga. Feliz e falida, fez fama da ferida de que faltava falar.

GIRAFA

Grande gulosa, gamava gomas à gente gira do gang. Gostava do gnomo Gilberto…gelava-lhe a garganta, gravitava e grunhia num gesto que lhe gotificava a greta. Gilberto ganhava por garantir gemidos com grande genialidade. Grava a glória e garante a gélida geriatria. Gloriosamente garantia o gostar da Girafa.

HIPOPÓTAMO

O hipopótamo histérico e hipocondríaco, humanizava, hipoteticamente, heróis honrando-os com humor. Havia herdado habilidades hostis que horripilavam os hóspedes do hotel que habitava. Hoje, as horas humidificam-lhe a história num holograma, humilhado pelos holofotes hermafroditas.

IGUANA

Igual a inúmeras imitações idiossincráticas da imaginação, inaugurava imagens inanimadas na ilusão de ilustrar impérios. Inútil, ignóbil e irritante interpretava indícios. Instalada na incompreensão e na ignorância, implorava por isqueiro. Isto iria impor-se ao ímpeto inquietante de ignorar irascibilidades. Indecisa, imortalizou-se na imensidão da igualdade e impura iluminaria a indecisão que se instalará intermitentemente.

JAVALI

Jurava jazer jovialmente num jantar. Jorrava-lhe, justamente, a juventude na já jeitosa jantarada. Com jejum e jazz, jurou, à janela, ser janado.
Janota, julgava justificar a janotice com justiça, jactando.
Jovem, não julgues!
Junta jogadas justas que não jorrem julgamentos jocosos.

LEÃO

Livreiro, lírico, louro, levava lentamente a loucura a lugares longínquos. Legitimamente labrego, limitava-se a localizar livros de leste para lingrinhas que lotavam o largo da livraria. Lentes largas localizavam o lote. A língua lembrava licores, o lema e a labuta não ligavam…mas a liberdade tem limites.

MACACO

Missionário místico, martirizava a multidão que se movesse mundanamente. Miseravelmente mordaz, mastigava morosamente a merenda mandada aos mendigos. Mandava mensagens motivadas pela malvadez mascarada de misericórdia. Mais que a maldade era o mexerico que o movia. Mostrava-se matreiro ao manipular as meretrizes, mantendo-as mercadoria marginalizada. Mantém-se manifestamente maculado, mas a morte misteriosamente mora em medir-lhe o medo.

NOITIBÓ

Naquele Novembro nostálgico, ninguém necessitou de narrativas. Notabilizou-se o noitibó por nascer. Nevava na nobre nação. Nu no ninho, negligenciou a natureza. Na névoa era notório o níquel que navegava. Nesta nuvem nasciam notícias negativas. O nariz novo não notou nada. A novela negra norteou a novidade e noitibó nunca namorará nem narrará a noite de natal.

OSGA

Optimista, organizava orgias. O olhar orgulhoso omitia o ónus do ofício: ostentar!
Oscarizada ouvia os outros, ortodoxos, que obliteravam o ouro que ornamentava.
Ostracizava-os por osmose.
Em orquestra, ossos e órgãos omitiam o ócio. Os óleos ordenavam que ouvisse o Olimpo!

PULGA

A pulga proferia poesia pura e prometia paraísos plagiados de postais pitorescos, com panoramas passados. Procurava com preocupação um par que pintasse partes profundas do pensamento. Pedia procissões ao povo para premiar profetas e prostitutas. A pulga pensava participar em paradas promiscuas porém, precaveu-se…pereceu sem piedade papal nem privacidade!

QUETZAL

O quetzal queria um quarto quadrado e quente. Queixava-se da quietude do quintal e das quermesses da quinta. Qualificava as querelas como quimeras quotidianas e questionava as quartas-feiras. O quetzal é um querido…quando quer!

RATO

Ralhava ruidosamente na razão de requerer romarias na rua. Restava-lhe a resmunguice para reclamar o repasto. Raramente receava a rebeldia da ralé que o rodeava, pois redigia rapidamente relatórios repletos de regras e regalias.
Rigoroso, regia a redacção e repartia a riqueza.
Rotulava religiosamente rancores, ruminando restos de recibos.
Recriava rastos e reciclava rolhas.
Relutante, rastejou rumo à ratoeira da revolução, reivindicando rímel para as rameiras da rua. Retornou de rosto e roupa rasgada mas reluzente e risonho pelo respeito recebido.

SAPO

Sabiamente seduzia a sobriedade dos seus senhorios para safar-se.
Sagaz, saboreava da sanidade que sabia sempre sentir, sem supor que suava ao subestimar a sensibilidade social.
Sonhava ser saxofonista, só que a sina saiu-lhe sem sorte.
Sentimental, supunha serem suficientes os sentidos para se safar sozinho aos sábados.
Sorria e serpenteava a sala sem sentinela só para sanar a saudade de uma sagres.
A sua sentença satânica seria sumir-se sem som, selado na simetria da surpresa que num susto soube socorre-lo.

TARTARUGA

Triste e teimosa, trovava tardiamente em tabernas.
Trabalhava, todavia, num talho onde trocava a tolice por tostões. Todas as tardes tentava telefonemas trocistas que tacteavam a tristeza.
Terminava as terças tesa, pelas tosgas de tinto e tremoços com tomilho. Turvava-lhe a timidez e tropeçava na tentativa de travar a turbulência tenebrosa.
Tensa, torcia a terrível testa, tacteando o tamanho dos trocos.
Temia que o tempo a tomasse também como um trocadilho telefónico sem tino.

URSO

Usava unguentos ucranianos úteis à úlcera que lhe usurpava a uretra.
Ultimamente a urticária era uma unidade univalente quando urinava. A urgência em untar-se ultrapassava a unanimidade.
Uma unhada, um uivo…ultrajou o universo e uma urna ultimava a utopia.
Utente urbano, usurpou unções e urânio que usou unicamente para unificar a sua última ufania. Universitário era o único utensílio útil para a uniformização.

VEADO

Vivia viciado em vídeos voláteis e versejava vagamente com voz verosímil.
Vesgo, vaidoso e vocacionalmente vadio, vendia violetas às viúvas da vila.
Virtudes vãs e vergonhas velhas vaticinavam a vida vil do veado. Vertia-lhe da vesícula a verdade vermelha e viscosa que venerava com veemência.
Vencido, verifica a vida que lhe varre veloz.
Violentamente as vozes vivas, que lhe valiam a vontade, vislumbram a vergonha que veste e vergam.
Vociferou vorazmente virando o verbo ao verdadeiro valor!
Visto não voltar à vaga de vivacidade, em vexame votou-se à virulenta e vulgar violência.

XAPUTA

Xerife, xilofonista e chalada por xícaras de xarope com xerez, cheirava xantina.
Xenófoba e xamã…chamavam-na xexé por usar xaile de xadrez e chapéu cheio de xantenas chafurdadas em chulé.
Chovia charme com a sua xenomania, chateando-se com xacocos. Chamuscava-os até chiarem das chacras.
O choque de um xantoma chacinou-lhe o cheiro e chocalhou-lhe os xerafins. 
Mas a xaputa não tinha chavo… e por um xelim chicoteava xeque-mates…com x-acto!

ZEBRA

Zelosa, zangava-se com o Zacarias por zombar da sua zarolhice.
Zarpava de Zundap, qual Zorro, quando um zumbido de zarabatana lhe fez ziguezague e a deixou zambeta.
Ainda zonza ouviu o Zé zombar na zona e fez zaragata.
Zafimeira, tornou-se zen num zoom ao zodíaco.
Num zurro tornou-se zaco no Zaire.
Mas, zarelha, ficou zorate e tornou-se zabaneira no zoológico.






terça-feira, 6 de março de 2012

Mamilaço: O Último Mecatrónico

Amílcar, técnico especializado em arranjos de máquinas.
Amílcar gozava da sorte de ser o último e único mecatrónico em todo o distrito. A sua reputação extendia-se além clientela e todos os habitantes o olhavam com especial reverência e particular curiosidade. Amílcar sentia-se como um rei. O rei das máquinas destroçadas. O especialista em maquinaria e electrónica pesada. Tudo parecia correr sobre rodas até àquele dia fatídico.
Amílcar opinava sobre a sorte com o adagio pessoal de que esta não se apanha. Para Amílcar, a sorte era algo que apenas se conquistava através de trabalho árduo e dedicação. Essa coisa da sorte era para preguiçosos a precisar de desculpas. Desta feita, Amílcar repudiava tudo o que envolvesse mesinhas e superstições.
4 de Março. Bolo de Aniversário do Amílcar. As velas pujantes na chama que parece dançar ao som dos parabéns; e há alguém que grita: "Pede um desejo!". Amílcar sorri com desdém e presenteia-se dirigindo o seu adagio ao alguém preguiçoso. Ao sair a última silaba dos lábios de Amílcar, ouve-se um estrondo e tudo fica escuro.
Amílcar acorda dois dias depois numa cama de hospital.
Sem entender o que aconteceu, Amílcar sente que deve sair dali o mais rápido possível. Sai do quarto e, sem dificuldade, encontra a rua deixando o Hospital para trás. Percorre as ruas da vila numa fuga pesarosa. O ar parece-lhe diferente. Esconde-se. Ajoelha-se e leva as mão ao peito, que lhe pesa e aflige. Amílcar começa a lembrar-se do sucedido: as palavras sobre a sorte; o barulho estridente das gargalhadas; a cera a derramar das velas para o seu peito...Amílcar espreita para dentro da bata hospitalar..."NÃOOOOOO!"
Os seus mamilos estão completamente erectos e cinzentos. Amílcar toca-lhes e compreende que os seus mamilos são agora de aço.
Foge para casa. Tranca a porta. Corre para a casa de banho e toma o duche mais longo da sua vida.
A campainha toca. Quem quer que seja não desiste. A campainha toca insistentemente.
Amílcar veste-se e procura saber quem tem tanta urgência em falar consigo.
"Quem é?"
"Amílcar! É o Santos da oficina. ´Tás melhor? Tens que ir à fábrica!"
Amílcar acalma-se e pensa que talvez ninguém notará a diferença; até porque os seus mamilos já aparentam ter voltado ao normal.
Amílcar sai de casa exibindo a mesma atitude de sempre; mas hoje irá aprender uma lição que mudará toda a sua existência. 
Amílcar chega à fábrica e anuncia a sua presença: "Foi aqui que pediram um Mecatrónico!"
E é essa a deixa para que os seus mamilos se tornem novamente em aço e rebentem com a sua camisa; expondo-os...de proporções palacianas e de incrível resistência!
Amílcar é agora olhado com horror. Os olhos que outrora o viam com reverência espelham agora o medo e o terror.
Amílcar foge.
Nunca mais ninguém saberá dele.
Amílcar acha que a sorte não existe...mas pelo sim pelo não...também não custa  prevenir!

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Dois Zombies num copo de shot

O tempo liquido colado à língua num gosto forte ao palato.
Palavras atabalhoadas no circulo do cálice domado pelo barril do léxico. Suado nos tremores da noite que anuncia mais que mera nortada, mesmo que violenta na génese pareça. Corta a respiração num grito que mudo…e transformo na gota que escorre na protuberância que gretou no vermelho quente dos lábios que a sorvem.
Há uma sede de boca seca que renuncia alimentar-se de outra coisa.
Cresce no fundo do copo a sensação de vazio que acompanha a alma nas noites mais sombrias. Ouve-se ao longe um estalar antigo que te arrepia num susto que faz o coração mudar-se para a garganta. Impotente enches o copo como se carregasses a arma mais potente que consegues imaginar.
Dás o primeiro tiro.
Voltas a recarregar.
Outro tiro.
E recarregas.
Não há ruído. Agora é o silêncio que pesa. Não existe som algum, e os teus ouvidos não se habituam ao barulho que apenas acontece por dentro. Doem-te. O zumbido torna-se tão violento que temes sangrar dos tímpanos. Tens que dar mais um tiro, é bom que desta seja certeiro.
Eles não primam pela velocidade mas, como não fazem pausas, a probabilidade de te apanharem acresce...e rapidamente os zombies passam a três!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sr. António: o Tonho
Sr. José: o Zéi

Da mesma criação, Tonho e Zéi, partilhavam o rumo que a vida seguiu. Ainda crianças, olhavam para o rebanho como oficio camuflado pela brincadeira. Encontravam-se pela fresquinha e lá iam pastar; na liberdade do campo e na promiscuidade das conversas de dois gaiatos refastelados pelas sopas de cavalo cansado que os aguentava até ao meio-dia.
O tempo passou.
As rugas, duas pasteleiras e a agonia nos ossos eram o testemunho do que o tempo lhes trouxe.
Perpetuavam a assiduidade do encontro pela fresquinha e lá iam lado a lado na ladainha repetida da estrada mal alcatroada que os levava aos montes vizinhos. Despediam-se com um até logo arrastado e afastavam-se de encontro ao rebanho que lhes pertencia guardar. No final da jorna encontravam-se junto aos portões e direccionavam a conversa, e as pasteleiras, para o caminho que os levava à vila. O discurso tinha pouco de verbal. Os anos tinham-lhes conferido a capacidade de comunicar apenas através de sons, palavras soltas e grunhidos. A verdade é que durante aqueles 40 anos lado a lado, eles e as pasteleiras, naquele caminho que fora terra e agora vislumbre de alcatrão, sempre encontraram entendimento. Antes do regresso a casa partilhavam um ou dois copos de três.
No dia 30 de Outubro de 2005 foram confrontados pelo primeiro desentendimento.
O Tonho fechou a cancela do portão do monte e, lado a lado com a sua pasteleira, foi ao encontro do Zéi. Disse em tom assertivo: "Hoje vamos ao Eden.". O Zéi refutou num grunhido: "Nhélá!". O Tonho insistiu que estava farto do Escarumba, pois o tinto azedava-lhe o estomâgo. O Zéi estranhou e rebentou em fúria acusando-o de tudo o que lhe achava defeito e que tinha acumulado ao longo dos anos. O Tonho viu-se encurralado e para terminar com a discussão, que não sabia gerir, enterrou-lhe no peito a navalha de 15 cm com que escarpava a côdea dura do pão.
Caíram as pasteleiras ao chão e a estrada mal alcatroada converteu-se numa poça funda de sangue.