terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Dois Zombies num copo de shot

O tempo liquido colado à língua num gosto forte ao palato.
Palavras atabalhoadas no circulo do cálice domado pelo barril do léxico. Suado nos tremores da noite que anuncia mais que mera nortada, mesmo que violenta na génese pareça. Corta a respiração num grito que mudo…e transformo na gota que escorre na protuberância que gretou no vermelho quente dos lábios que a sorvem.
Há uma sede de boca seca que renuncia alimentar-se de outra coisa.
Cresce no fundo do copo a sensação de vazio que acompanha a alma nas noites mais sombrias. Ouve-se ao longe um estalar antigo que te arrepia num susto que faz o coração mudar-se para a garganta. Impotente enches o copo como se carregasses a arma mais potente que consegues imaginar.
Dás o primeiro tiro.
Voltas a recarregar.
Outro tiro.
E recarregas.
Não há ruído. Agora é o silêncio que pesa. Não existe som algum, e os teus ouvidos não se habituam ao barulho que apenas acontece por dentro. Doem-te. O zumbido torna-se tão violento que temes sangrar dos tímpanos. Tens que dar mais um tiro, é bom que desta seja certeiro.
Eles não primam pela velocidade mas, como não fazem pausas, a probabilidade de te apanharem acresce...e rapidamente os zombies passam a três!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sr. António: o Tonho
Sr. José: o Zéi

Da mesma criação, Tonho e Zéi, partilhavam o rumo que a vida seguiu. Ainda crianças, olhavam para o rebanho como oficio camuflado pela brincadeira. Encontravam-se pela fresquinha e lá iam pastar; na liberdade do campo e na promiscuidade das conversas de dois gaiatos refastelados pelas sopas de cavalo cansado que os aguentava até ao meio-dia.
O tempo passou.
As rugas, duas pasteleiras e a agonia nos ossos eram o testemunho do que o tempo lhes trouxe.
Perpetuavam a assiduidade do encontro pela fresquinha e lá iam lado a lado na ladainha repetida da estrada mal alcatroada que os levava aos montes vizinhos. Despediam-se com um até logo arrastado e afastavam-se de encontro ao rebanho que lhes pertencia guardar. No final da jorna encontravam-se junto aos portões e direccionavam a conversa, e as pasteleiras, para o caminho que os levava à vila. O discurso tinha pouco de verbal. Os anos tinham-lhes conferido a capacidade de comunicar apenas através de sons, palavras soltas e grunhidos. A verdade é que durante aqueles 40 anos lado a lado, eles e as pasteleiras, naquele caminho que fora terra e agora vislumbre de alcatrão, sempre encontraram entendimento. Antes do regresso a casa partilhavam um ou dois copos de três.
No dia 30 de Outubro de 2005 foram confrontados pelo primeiro desentendimento.
O Tonho fechou a cancela do portão do monte e, lado a lado com a sua pasteleira, foi ao encontro do Zéi. Disse em tom assertivo: "Hoje vamos ao Eden.". O Zéi refutou num grunhido: "Nhélá!". O Tonho insistiu que estava farto do Escarumba, pois o tinto azedava-lhe o estomâgo. O Zéi estranhou e rebentou em fúria acusando-o de tudo o que lhe achava defeito e que tinha acumulado ao longo dos anos. O Tonho viu-se encurralado e para terminar com a discussão, que não sabia gerir, enterrou-lhe no peito a navalha de 15 cm com que escarpava a côdea dura do pão.
Caíram as pasteleiras ao chão e a estrada mal alcatroada converteu-se numa poça funda de sangue.