sábado, 22 de junho de 2013

Mar me quer ou o coração é uma praia

Era uma sala enorme onde perdia os dias enrolada na névoa que morava lá fora. O vento batia na janela como a força do amante que atira a pedra para anunciar a sua presença. Mas o ruído era apenas o de um embalar triste e arrastado que lhe fazia companhia à dor e ao riso.
Pela janela, o mar gelava a areia num incessante vai e vem. Cenário inóspito pela forma como a cor do céu e do mar se juntavam num tom zangado e escuro na turbulência das ondas e no troar das nuvens que carregavam quanta água carrega o mar.
Naquele dia, apenas uma velha se atrevia a deixar pegadas na areia. Da janela da sala, temeu! Pois ao longe a tez da velha parecia feita de barro secular, ressequido e gretado. No entanto, transbordava uma jovialidade que desafiava o gigante mar. A ligeireza com que percorria a areia dura e gelada não era desfeita pelo bater violento da onda que morria aos seus pés. Parecia ter no corpo a perícia secular do conhecimento. Ainda assim, o olhar aflitivo que a fintava sucumbia à interrogação. E se o seu rosto se desfizesse? E se a maresia se colasse às rodelas escarlate que rompiam na tez em timidez?
A preocupação, ainda que processando a imagem em câmara lenta, durou apenas três ruidosos rebentamentos; depois a mente levou-a para outro lugar; ainda que continuasse naquela sala enorme.
Já há muito que estas viagens eram aceites. Como o movimento perpétuo do mar, num vai e vem, também a sua mente impulsionava o raciocínio a esse vai e vem, a essa viagem incessantemente presente; apenas se separava da imagem do mar por não manter a mesma constância, a mesma duração repetida na cadência.
A tortura de manter viva a consciência que se perdia era acompanhada pela certeza que a loucura não tardaria a chegar. Por isso, preferia deixá-la deambular sem a companhia do porquê.
Lentamente substituía as imagens por meras silhuetas objectivas e delineadas; e enquanto enfrentava este cessar num deixa andar inquietante, a tortura era imposta de forma baça na pupila que outrora fora ela.
À volta não acontecia quase nada quando o que lhe surgia por dentro entrava na vertiginosa velocidade do sentir.
Felizmente, também este episódio não demorou mais que um momento.
Bem devagar surgiam os primeiros agudos que estilhaçavam a forma de ouvir ao longe o agonizante grito das gaivotas.
Seria apenas o estalar do soalho antigo daquela sala enorme. Momentaneamente sentiu um arrepio no susto provocado pelo som, que lhe fez o coração mudar-se para a garganta. Não sentia receio, mas antes a tristeza profunda que assemelhava o estalar à dor de perda que sentia dentro. Nada estalava tão alto como o seu coração abandonado, mas havia ali uma semelhança, um companheirismo inesperado que apenas angústia lhe trazia aos dias.
Crescia no fundo do copo a sensação de vazio que acompanha a alma nas noites mais sombrias. Havia que resolver esse obstáculo. Encheu o copo. E parou a espera na anestesia do corpo e, sentada, ficou, parando o tempo na pior frame da fita.
A cortiça imóvel assim ficou e com pouca nostalgia era lembrada na cor rubi que se aninhava no estômago. Batem às portas da memória…agora que já não morava lá ninguém que atendesse o ruído.
Um silêncio cruel instalou-se. Pensou que fosse o fim a chegar. Bebeu de uma assentada e preparou o corpo para o abandonar. Demorou apenas um momento, mas a crueldade na ausência do som foi tão poderosa que, quando interrompida, o ouvido levou tempo e o cérebro morou em entender o que acontecia.
Quando a nitidez se impôs, revelou a voz de um gaiulo, sabido, que treinava o pregão para o sustento da época que se aproximava:
     “ Aproveitem! Conquilhas grandes! Quando abrem no tacho parecem as asas de uma gaivota! De grandes que são! Aproveitem!”
     “ Conquilha toda grande! São maiores que eu! Grandes e fresquinhas!”
Esboçou um sorriso pálido e o ouvido escolheu não mais ouvir. Um suspiro revelava a desilusão de ainda pertencer ali. E a sala enorme parecia perder a sua altivez, por uma fracção no tempo, parecia vê-la pelo olhar relativo de um adulto.  E o tempo passou.
A chuva caia do céu como se peneirada pelas redes de um pescador. Ninguém vivo poderia ter memória daquele dilúvio áspero e nervoso que condensava o ar. Era a chuva que trazia a noite a passos largos, que se instalava na nitidez dos relâmpagos que irrompiam o céu em grande alarido pirotécnico. O mundo estremecia na presença daquela natureza irada.
Na sala, enorme, apenas um relógio de pé se mantinha. Um relógio antigo, herança do avô paterno, que dava horas ainda antes desta estar certa; curiosamente, como o avô que gritava com altivez antes de pronunciar a única frase do discurso que aludia à sua razão, esta, que entoava em quase mudez. Para o seu avô, a discussão era ganha nas primeiras entoações; pois a paixão com que se proferia as palavras, no seu entender, ganhava à placidez com que se dava a estocada final numa frase inquestionável. Tinha o saber sobre todas as coisas e, sem adversário à altura, o único gozo que saboreava numa discussão era o de poder vociferar barbaridades antes de finalizar com a coerência do conhecimento.
Fintou o relógio, num dos passeios agitados com que o olhar intervalava o infinito. Não foi preciso muito tempo para que aquele tempo lhe penetrasse a consciência de forma abrupta. Era a sua infância televisionada num filme mudo sem direito a legendas. Reproduziram-se uma sequência de flashback e fowards, sem regra cronológica ou importância. Apenas o olhar sorridente e cheio de vida daquela menina que crescia e voltava à meninez, se mantinha inalterado. Uma imagem parou, demorando mais que o necessário ao seu entendimento. A menina que corria livremente pela praia, aproximando e afastando-se do mar; numa brincadeira íntima envolta em gargalhadas, permaneceu o olhar para a objectiva. Assim ficou estática a olhar directamente para si. Não era um olhar infantil, mas divorciado de qualquer dúvida. Era um olhar sábio que aproveitava a felicidade daquele momento por compreender a sua frugalidade.
Os cantos da boca subiram-se-lhe e o peito encheu-se de ar; houve dor e a lágrima desceu até aos lábios que esmoreceram a emoção. Interrompeu-se a quietude quando o cheiro a vinho lhe povoou a memória com o velho caseiro que partira ao mesmo tempo que a riqueza perdera lugar naquela casa.
Sentia, agora, o tempo líquido colado à língua num gosto forte ao palato. As palavras saiam atabalhoadas no círculo do cálice domado pelo barril do léxico. Suada nos tremores da noite que se instala, anunciando mais que mera nortada; ainda que na génese pareça outro tipo de violência.
Corta a respiração num grito mudo que transforma na gota que escorre na protuberância gretada no vermelho quente dos lábios que a sorvem.
Reunida nesta companhia decadente, torna-se altruísta cedendo a sua geometria e alterando a sua existência. Mistura-se, atenua a força e o seu orgulho acende o comprido rastilho da dor.
E mais um! Para adormecer o cérebro, enganá-lo e dissuadi-lo para um comportamento que não este, que não esta dor em potência! Mas o que ganha são apenas frágeis fugas nas ideias; fugas que criam imagens distorcidas do tempo, num tempo que já não se controla e, através do vidro baço, daquela sala enorme, chove. E que grande é o dilúvio que lhe acontece por dentro.
Perdeu-se a textura do sangue que voluntariamente insistia em correr e ficar espesso no corpo mole e desfigurado. Coisas que acontecem à beleza que arde e finda em cinzas; desconhecidas e irreconhecíveis. Como as cartas de amor que, traídas pelo tempo, se queimam no aro de fogo em que o artista desafia a vida num circo de orgulho e sofrimento.
Ninguém saberia o sucedido não fosse a tormenta de um espírito mais inquieto e disponível à glória desta arte.
Havia ali uma sede de boca seca que renunciava alimentar-se de outra coisa. Havia ali paragens no tempo que não eram preenchidas por aquele corpo ávido de transporte. Havia ali névoas que se enrolavam a ela com a força do desejo da saliva do amante. Havia partes de si que não fugiam ainda que o desejo fosse o de fugir para estar mais perto daquele que a desprezara. Havia ali imagens que se colavam com a força dos cheiros e do ruído que a ausência traz. E era assim que ela acontecia, naquela sala enorme. E era assim que ela sucumbia, naquela sala enorme, a mais um trago amargo.
Enchia um copo em ritual de quem enche um corpo; e é extraordinário como ambos caem na desgraça de uma gargalhada forçada pela fachada de um rótulo, ainda que credível.
Coando as horas, destilavam-lhe os dedos agarrados ao gargalo da garrafa, num espaço em que a saudade despedia o romantismo em gestos febris e onde a alma encontrava depurativo alambique.
Já passaram semanas e ainda aqui com a força dos dedos na cortiça imóvel e inanimada que lhe parece ser o mais forte dos rivais.
Lá fora o mar já não rugia, sussurrava apenas a melancolia que pejava o ar.
O céu copiava a acalmia até ao horizonte num azul que, de celeste, fazia inveja aos anjos.
A areia tornara-se pálida e solta pelas carícias com que o sol a presenteava.
Tudo era paz e harmonia num cenário que, de idílico, até a velha trazia, de novo, à praia. No mesmo passo convicto com que desafiara a braveza do mar, percorria, agora, a praia envolta na mesma destreza e desdém.
A alvorada era assim corrompida pelos corpos sujos e marcados pelo tempo dos pescadores que regressavam a terra com o rosto desiludido pelo mar.
O único que mantinha jovialidade era o cachopo; agora amadurecido pela rudeza do inverno. Rejubilava com a conquilha apanhada durante a curvatura do sol e as entranhas da areia. Nos olhos brilhavam-lhe os sonhos que esperava comprar com o saldo da jorna. Sentado no paredão, controlava a afluência humana, que aumentava com a altura do sol. Aguardava, pacientemente, como um cão de caça bem treinado, que a praia se compusesse de corpos, e carteiras, para anunciar o seu pregão. Pregão estudado à exaustão para que fizesse jus ao seu tão precioso tesouro que oferecia por tostões. Pregão que anunciava como a única coisa que o separava da conquista dos seus ensejos.
Só naquela sala enorme se mantinha a indiferença do bom tempo.
O vidro da janela, de baço, quebrava a luz que o sol insistia em fazer entrar. Os raios fustigavam a vidraça, mas atentavam apenas a sua temperatura. A luz não penetrava senão baça e disforme. Era conquista suficiente para desvendar a grotesca realidade que a sala continha dentro. Aquele corpo fechado na dor que um dia sentira. Abandonado de tudo. Esquecido de si no rasto que o sal deixara no rosto à custa das lágrimas que ai correram e secaram.
Golpeava a vida em cada trago que ingeria.
Inchava-lhe a garganta adivinhando a agonia que se instalaria no estômago, já calcinado pelos taninos que tornavam, simultaneamente, a língua áspera.
Mas nada superava o aperto no peito, o nó que ocupava o lugar do que apenas batia a custo, para bombear o escasso sangue que ainda insistia a correr por dentro.
Há muito que a ilusão perdera ali a beleza. Mas a verdade era negada no cheiro a éter que preenchia o ar.
Já não era o abandono que a ostracizava àquela clausura. Já parecia ter acontecido há tanto tempo que em momentos de rara lucidez achava estar a perder o tempo de outra vida. Mas nem esta forte sensação a coagia a sair dali. Com a mesma consciência se deixava ficar. Não por falta de vontade, mas porque o vazio lhe trazia mais companhia que a imagem que os lamentos das gaivotas lhe traziam lá de fora.
Obrigava o corpo em sentidos opostos. Obrigava-o a ceder à teimosia de continuar vivo e, intervaladamente, obrigava-o a sentir. Ainda que este sentir fosse para si a pena, o castigo de ter amado tão profunda e totalmente. Já não era nada esse sentir. Não passava de tentativas vãs de obrigar o corpo à dor da alma, porque agora o sofrimento não poderia ser mais físico. Exclusivamente físico. E isso era demasiado insuportável para admitir.
Então, o engano começou-lhe a surgir como alternativa passível de eficácia. Há muito que a coerência tinha abandonado o seu discernimento; parecia-lhe uma descoberta de ouro que escondia de si mesma com receio de que se ponderasse a conclusão a que chegara, esta perderia a força e o sucesso.
Não poderia jamais permitir que o corpo tísico favorecesse o esquecimento do que fora cataclismo para os males da sua alma; o desdém absoluto daquele que amara tão inteiramente.
Ao tornar-se demasiado consciente na conversa que opera dentro de si, desiste. A sede é imensa e não mais a quer prologar. A custo procura substituir a garrafa vazia pela última daquele lote. Mas isto leva uma aparente eternidade. O esqueleto, que sustenta o invólucro que a forma, em mórbida dificuldade se arrasta. O peso da garrafa é ainda maior. E isto gera outra distracção. Mas a sede desmesurada está sempre presente. É quando um nó de veludo bem apertado se instala no estômago já cansado e a saliva cola-se aos minutos, pois a ideia de ficar assim, sem aparo de mais um trago, traz-lhe à memória o que os dias poderiam custar a passar.
Os dedos tacteiam o calor emanado que embacia o cheiro do ar. Fica presa a essas pontas de dedos que demora a reconhecer como suas. Depois sucumbe ao cansaço daquele movimento.
Lá fora a vida passa alheia a esta história.
A azáfama dos veraneantes não permite outra atenção que não à da rotina dos protectores solares, da preocupação do chapéu e do rejúbilo da temperatura da água.
Nem as crianças, mais curiosas por natureza, reparam naquela janela. Entretidas por entre conchinhas e castelos de areia, alheiam-se do atrevimento, e a curiosidade pelo desconhecido foca-se apenas no mundo aquático que exploram entre o pedaço de pão carregado de manteiga que lambem avidamente.
Voltam as gaivotas que se afastam do mar e em negro presságio sobrevoam a casa. Soltam gemidos agudos que ecoam como que em socorro pelo que definha naquela sala enorme; mas nem os ouvidos mais treinados lhe reconhecem o choro.
E na sala tudo continua igual.
Até a imensidão encontraria ali lugar, tal é o pouco espaço que aquele corpo ocupa já desabitado de esperança. Oco e frágil.
Acorda lentamente e intermitentemente volta a jogar a mão à sua última aposta. Com a garrafa cheia no seu regaço olha o mar uma última vez. Talvez aquela imensa massa a tivesse querido, mas agora era tarde para aquele corpo gasto lhe encontrar sepulcro. À praia, apinhada de gente, não encontrava alivio de ali deixar entregue o que um dia fora cheio de amor.
Volta à tentativa gorada de libertar o liquido acre para molhar a boca desértica. Demora todo o tempo que o resto da sua força permite.
No entanto, as golpadas invertem qualquer tentativa em degustar o banquete; e é amargo e chega a ser ácido o cheiro inalado e travado no já gasto deambular das horas.
Passo a passo sente o peso do corpo que definha no ronronar já passado das dádivas eternas. É um peso que pesa de dentro para fora, é um peso morto por dentro, é o peso de dentro que manda o peso de fora perder-se.
Pesada, cai e num impulso instintivo não mais se levanta. Fica enrolada em si no chão daquela sala que deixa de ser enorme, onde as paredes ganham vida e avançam para lhe oferecer protecção tumular.
Lá fora, nem os mais astutos percebem e tudo parece permanecer igual.
Mas tristes ficam os dias e perdidas as gaivotas que se atiram como pedras à janela da sala que deixou de existir.
Pressa, tanta pressa tem agora o amante em chorar.


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